*Por Victoria Almeida e Milena Lumini
Desde as exuberantes florestas tropicais da Costa Rica, passando pelo Cerrado brasileiro, até as geleiras da Patagônia, a região da América Latina e do Caribe é rica e diversificada em paisagens e recursos naturais. Ela contém 40% da biodiversidade global e metade das florestas tropicais do mundo, incluindo a sua maior, a Amazônia, lar de uma em cada 10 espécies conhecidas.
No entanto, a região também apresenta altas taxas de desmatamento e intensa exploração de recursos. Impulsionada pela demanda por commodities, a América Latina se posicionou ao longo dos anos como uma grande exportadora de recursos primários. Como resultado, a intensificação da agricultura, a expansão de terras agrícolas e o aumento das atividades de mineração foram identificadas pelo Programa Ambiental das Nações Unidas como os principais fatores locais de desmatamento, poluição e perda de biodiversidade.
Esse cenário convida uma reflexão sobre se seria possível, e como, aproveitar as oportunidades econômicas dos recursos naturais e, ao mesmo tempo, ter um impacto positivo no meio ambiente da região. A resposta está nos três princípios de uma economia circular – eliminar resíduos e poluição, manter produtos e materiais em uso e regenerar sistemas naturais.
Designers são cruciais para colocar esses princípios em prática. As escolhas feitas na fase de design ou projeto ajudam a garantir que se dê mais aos ecossistemas do que se tira deles. Ao projetar produtos e modelos de negócios com base nos princípios de design circular, os designers criam oportunidades econômicas a partir dos recursos naturais locais, ao mesmo tempo que preservam a saúde dos ecossistemas. Algumas histórias da América Latina ilustram essas oportunidades.
O design de alimentos pode beneficiar os ecossistemas locais e impulsionar a inovação culinária. Todas as decisões tomadas até o momento em que um produto alimentício chega no prato de alguém ou na prateleira do supermercado determinam o que será cultivado e como, o que será consumido e o que é desperdiçado. Essas decisões, tomadas por designers de alimentos, influenciam diretamente o estado da biodiversidade. De acordo com a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), 75% da nossa ingestão global de alimentos é limitada a apenas 12 tipos de plantas cultivada e cinco espécies animais, apesar da existência de centenas de milhares de espécies comestíveis. Ao aplicar os princípios da economia circular, os designers de alimentos latino-americanos estão aproveitando ao máximo a biodiversidade local como uma fonte valiosa de inovação culinária, aumentando a demanda por uma variedade maior de espécies nativas e incentivando práticas agrícolas que beneficiam os ecossistemas locais.
Esse é o caso do restaurante Corrutela, em São Paulo (atualmente com atividades pausadas, devido às restrições da pandemia). O ponto de partida para os ricos pratos do chef Cesar Costa são ingredientes frescos da agricultura familiar agroecológica, cultivados na zona rural sul da cidade, uma área que contém remanescentes da Mata Atlântica e importantes nascentes de água que abastecem a megacidade brasileira. Apoiar esses agricultores locais, incorporando ingredientes locais ao cardápio regularmente, e permitir que tenham a liberdade de decidir o que cultivar ajuda a proteger esse território rural da expansão urbana, mantendo-o produtivo e saudável.
Já na Cidade do México, o chef premiado Enrique Olvera ajudou a colocar o cacto nopal no mapa culinário e agora está apoiando a sua produção na área biodiversa de Xochimilco, onde estruturas aztecas (‘chinampas’) construidas sobre manguezais protegidos suportam policulturas orgânicas e contribuem para a fertilidade do ecossistema local. Com a expansão da mancha urbana, chefs locais incluindo Olvera estão incorporando mais ingredientes locais aos seus cardápios para garantir mais demanda estável para agricultores de Xochimilco e ajudar a acelerar a adoção de métodos agroecológicos. Isso ajuda a manter uma oferta de ingredientes diversos e deliciosamente saudáveis e, ao mesmo tempo, proteger esse importante ecossistema periurbano.
A inovação dos biomateriais pode trazer vantagens competitivas únicas. Os recursos usados para outras aplicações que não alimentos também possuem uma grande variedade de propriedades exclusivas com valor econômico. Muito desse potencial foi usado e preservado por povos tradicionais. Agora, grandes empresas também estão mergulhando nesse conhecimento e trabalhando com as comunidades para ajudar a dimensionar esses modelos e criar produtos que são melhores para as pessoas e para o meio ambiente.
É o caso da Natura, empresa brasileira de cosméticos que, ao aliar pesquisas avançadas e conhecimentos tradicionais das comunidades amazônicas locais, ajuda a desvendar as valiosas propriedades cosméticas de diferentes espécies de plantas. Este tem sido um importante impulsionador de inovação para a Natura, cuja cadeia de suprimento inclui quase 40 tipos de ingredientes derivados de plantas, obtidos através do trabalho com 7.000 famílias locais. Com frutas e sementes sendo integradas às cadeias de valor de cosméticos, a floresta gera mais valor econômico para as comunidades locais quando está em pé do que quando é desmatada para a comercialização de produtos de madeira, o que incentiva práticas mais regenerativas.
Design com a natureza, para a natureza. Um dos pontos fortes da América Latina é a sua biodiversidade e os recursos naturais incomparáveis, mas exemplos como os descritos neste artigo ainda estão longe de se tornarem a norma. Há uma enorme oportunidade em aproveitar o potencial de inovação da biodiversidade local, por meio de aplicações que também ajudam a manter e restaurar a saúde dos ecossistemas. Existe também muito conhecimento sobre propriedades valiosas das espécies e modelos de produção que podem ser aproveitados por meio da colaboração com as comunidades locais, criando negócios mais distribuídos e inclusivos. A aplicação dos princípios da economia circular na fase de design dos produtos, dos negócios e das cadeias de valor oferece uma estrutura útil para soluções que beneficiam os negócios, a sociedade e a natureza.
*Victoria Almeida é gerente de comunicação e Milena Lumini, coordenadora de conteúdo da Fundação Ellen MacArthur na América Latina